Armando Reverón en el documental de Margot Benacerraf (Venezuela, 1952).

Armando Reverón en el documental de Margot Benacerraf (Venezuela, 1952).


la rebelión consiste en mirar una rosa

hasta pulverizarse los ojos


Alejandra Pizarnik


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"Porta Aberta ao Mar" / peça de teatro de viviana marcela iriart (fragmento), fotos Roland Streuli


Rosalinda Serfaty y Fedra López. Foto: Roland Streuli



Obra estreada o 14 de Abril de 2007 na Sala de Concertos do Ateneo de Caracas, Venezuela, no ciclo “Três dramaturgas do silêncio ao estalido”, em homenagem a Esther “Dita” Cohen.







A: 
Sonia M.Martin, sempre, por tudo; Yamelis Figueredo e Elly Messmer, porque acreditaram em mim quando nem sequer eu acreditava em mim;  Doris Berlín, pela vida que me deu; Rubén Rega, por suas críticas e sugestões;  Fanny Arjona, por sua amorosa compreensão.
Às vítimas das ditaduras e revoluções de direita, esquerda, centro...





Argentina, aproximadamente 1990. A sala de uma casa velha. É um lugar cálido, com poucos elementos. Um janelão; um abajur de pé, apagado, quem terá uma luz muito cálida quando seja ligado; um cabide, um sofá.
É o final da tarde de um dia de inverno.
Sandra, exilada argentina de uns quarenta anos, chega à casa de Dunia, amiga da infância da mesma idade, depois de mais de dez anos de ausência.  
As duas estão vestidas informalmente, percebendo por a forma de vestir-se que são duas profissionais modernas e de sucesso.
Sandra e Dunia manterão sempre um estrito controle de suas emoções: temem esgotar-se. Podem alçar a voz, mas não gritar, rir com alegria verdadeira mas não às gargalhadas, emocionar-se até as lágrimas mas não chorar com desesperança. Nunca perdem a compostura.
O que elas receiam manifestar com palavras exprimem-no a través da dança: uma dança moderna e à vez antiga, como seus conflitos.



Ato Único
    
O cenário está na penumbra.
Escuta-se a Susana Rinaldi cantar Por que vai vir, (Porque vas a venir)  de Carmen Guzman e Mandy, até o momento no que as personagens falam.
Dunia entra pelo lateral direito, emocionada, nervosa. Senta-se, para-se, vai de um lado ao outro. Está muito contente. Quase não pode conter o riso.
Pelo lateral esquerdo faz sua aparição Sandra. Está nervosa e emocionada, mas seus movimentos são lentos e controlados. Detêm-se quando chega ao janelão, que se ilumina tenuemente com uma luz cálida. Olha para o interior mas não vê ninguém. Dunia tem saído de cena nesse momento. Avança até o proscênio
Dunia entra e não a vê. Vai até o proscênio.
Até que se indique o contrario, Sandra e Dunia atuarão como se estiveram num sonho. 
Não se olharão nem tocarão jamais. Quando falam, é como se falassem consigo mesmas.

  
“Por que você vai vir, minha casa velha
inaugura uma flor em cada grade.
Por que vai chegar, depois de tanto,
confundem-se em mim, risos e choros.

Sei que vai vir não o diz,
mas vai chegar uma manhã.
Na minha voz há um canto, já não estou triste
e entra um raio de sol por minha janela.

Porque vai chegar, de uma longa viagem,
é diferente a cor, outra a paisagem.
Tudo tem outra luz, tem outro jeito,
porque vai chegar depois de tudo.

Porque vai vir, desde tão longe,
hoje voltei olhar-me no espelho.
E como me verão, perguntava-me,
os olhos desse hoje que eu esperava.

Porque vai vir, minha casa velha,
inaugura uma flor em cada grade.
Porque vai chegar, é que espero-lhe
porque você me quer e eu te quero.
Porque vai chegar, é que eu te espero.
“porque você o quer e eu o quero.”


SANDRA (como se estivera sozinha, sem notar à Dunia)
E então pensei, terá mudado muito? Terei mudado tanto?

DUNIA (Na mesma atitude de Sandra)
Eu esperava impaciente. Olhava-me nos espelhos e perguntava-me com que olhar veria estas rugas que pegaram meus olhos sem os seus. Reconhecer-me-ia  com estes cabelos brancos que não lhe contei?

SANDRA
A rua de sua casa parecia a mesma. A laranjeira na esquina do quitandeiro, as lajotas ainda quebradas no armazém de Dom Giuseppe, a magnólia que jamais quis dar flor. Mas sobre tudo o cheiro da laranjeira que sempre anunciava a cercania de sua casa. Tudo parecia igual.

DUNIA
Sua voz ao telefone, alegre e brincalhona, outra vez cá e não lá, a mesma voz de sempre e juro-lhe, tive vontade de comer-me o auricular para comer-me sua voz para que jamais fosse embora.

SANDRA (Põe-se de costas)
Confesso: tive medo. A campainha estava ali, pequenina e lustrosa. Parece um mamilo, pensei, um mamilo que convida ao erotismo, mas não, essa campainha-mamilo convidava-me ao passado, e eu dizia: o toco, não o toco. Estendia um dedo e acariciava-o lentamente, sem pressioná-lo, não seja que se excite e soe. Meu dedo lhe recobrava em minha memória.

DUNIA (Põe-se de costas)
Eu olhava-lhe a traves do olho da porta, a qual das duas via? Os anos passavam pelo olho de vidro, não me deixavam vê-la.

SANDRA (Avança devagar de costas até Dunia)
Meu dedo seguia na campainha. Uma porta tossiu debilmente e eu a escutava. O mamilo que geme não ia ter que ser tocado. Traspassei a soleira e arrimei meu peito, meu corpo todo sobre a porta.

DUNIA (Avança lentamente de costas até Sandra)
Eu  vi-la e colei meu corpo no exato lugar onde você tinha posto o seu. Uma porta separava-nos e uma porta unia-nos. Eu estava-me afogando e pensei: não há beira perto nem salva-vidas na cercania.

SANDRA
Sua respiração na minha orelha asfixiava-me, não me deixava pensar.
Eu enlouquecia, eu desvanecia.

DUNIA
O ar de sua boca dava-me calor e eu ia enchendo-me de doçuras velhas. 
O ar de sua boca queimava-me, eu era um bonzo.

SANDRA (Se para muito perto das costas de Dunia, sem tocá-la)
Seus dedos arranhando a madeira, arranhando e gemendo, como uma gata vagabunda em ponto de parir lembranças mortas.

DUNIA
Senti que se deslizava pela porta até chegar ao chão e a alcancei para não se bater.

SANDRA
Sua costa cravava-se na minha, me atravessava. Eu sofria, eu gozava.

DUNIA
Você chorava, você que jamais chorava, com um choro que não lhe conhecia.

SANDRA     
Você chorava e suas lágrimas tinham a mesma dor que sempre lembrava.

 DUNIA
Escutei-lhe dizer: por fim há voltado.

SANDRA
E escutei-lhe contestar: por fim hei regressado.

Susana Rinaldi canta “O coração ao sul  (El corazón al sur) de Eládia Blázquez. Sandra e Dunia miram-se por vez primeira, ainda estranhas, e dançam um tango mistura de coreografia clássica com moderna. No principio dançam mantendo a distancia de duas pessoas que não se conhecem; na medida em que o tango avança tomam confiança.

“Nasci num bairro onde o luxo foi uma sorte,
por isso tenho o coração olhando ao sul.
Meu pai foi uma abelha  na colmeia
as mãos limpas, o alma boa…

E nessa infância, a temperança forjou-me,
depois a vida tendeu-me mil caminhos,
e soube do magnata e do batoteiro,
por isso tenho o coração olhando ao sul

Meu bairro foi uma planta de jasmim,
a sombra de mina mãe no jardim,
a festa doce das coisas mais simples
e a  paz na relva de cara ao sol.

Meu bairro foi minha gente que já não está,
as coisas que já nunca voltarão,
se desde o dia no que fui embora
com a emoção e com a cruz
eu sei que tenho o coração olhando ao sul!

Levo em mim a geografia do meu bairro,
será por isso que não parti para sempre,
a esquina, o armazém, a garotada
os reconheço… são algo meu…

Agora sei que a distancia não é real
e descubro-me nesse ponto cardinal,
voltando a infância desde a luz,
tendo sempre o coração olhando ao sul!”



SANDRA
As vezes que Miri chorou cantando esta canção. Claro, desde Venezuela, “sul” significava Argentina. (Pausa. Sorri) Nos sentávamos num café em Sabana Grande e púnhamo-nos a lembrar. “Lembra-se da rua tal?"  “Claro! E você, lembra-se daquela esquina, daquela fragrância, daquela luz essa manhã?" (Pausa) Inevitavelmente surgia o tema das comidas... os sanduíches de “miga”! Você pode acreditar que na Venezuela não há sanduíches de "miga"? Agora que o tempo passou, penso que há poucas coisas tão bobas como ter saudades de uma comida, mas então... (Pausa) E assim, entre lembrança e lembrança, a mesa ia-se enchendo de gente, gente que sabia que Miri cantava, amadora só, e então... o que lhe pediam?

DUNIA
Miri cantava, os olhos iam-se-lhe enchendo de lágrimas e no final, quase como se o tivesse preparado, como se fosse uma atuação, com a última frase... uma lágrima caia.


SANDRA (Agradavelmente surpreendida)
Tem boa memória.

DUNIA
As vezes que me contou por carta! Se parecia que as sextas pela noite, a única coisa que você tinha para fazer era ir a Sabana Grande escutar Miri cantar...(Cantarola “O coração ao sul”)

SANDRA
E a lembrar. E... eu também chorava, sabe? Por que quando arrancam-lhe de sua terra e lhe deixam sem raízes no ar numa terra alheia, que outra coisa pode fazer senão chorar?

Ficam um instante em silêncio.

DUNIA (Está emocionada mas trata de dissimular)
E o quê foi da vida de Miri?

SANDRA (Sorri com ternura)
Passou-se todo o exilo chorando porque não suportava a distância. Quando tudo acabou teve medo de voltar… como eu…e ali está, ainda em Caracas, cantando o mesmo tango, dizendo: “No próximo mês regresso para sempre”. E o próximo mês não chega nunca.

DUNIA
Estranho paradoxo. Vocês sentindo saudades por um país que nós queríamos abandonar, qualquer pais era melhor do que este. Não se imagina a inveja, sana, mas inveja no fim, que me dava cada vez que recebia uma carta sua e estava no México, na Londres, em Nova Iorque... Porque nós estávamos... bem, como estamos agora, longe do mundo.

SANDRA
E eu invejava-lhe quando em suas cartas falava-me de seus passeios pela cidade... por minha cidade, reduzida a ser um mapa colado na cortiça de meu cozinha.

DUNIA
Mas quando moravas aqui... que feio parecia-lhe tudo! Não fazia mais que criticar,
lembra-se? Não havia país pior do que este.

SANDRA (Zombando-se com carinho)
Nem melhor. Porque nós ou somos os piores ou somos os melhores, mas iguais... jamais! Porque isso de ser como os latino-americanos... por favor! Nós somos europeus... ou éramos? Desde criança e como uma ladainha escutei essa frase, como se o ser europeus nos fizesse especiais e melhores.

DUNIA
É verdade. Depois sacaneávamos contra o italiano, a galega, o russo, o francês. Mas como gostávamos de ser europeus!


SANDRA
Até que a guerra das Malvinas chegou. Deve haver sido duro acordar um dia e
repentinamente... horror!  ser latino-americanos!!

DUNIA
Imagine-se, se Victoria Ocampo dizia que em Paris éramos exilados argentinos e em Buenos Aires exilados europeus. Mas a guerra pôs-nos em nosso verdadeiro lugar geográfico.

SANDRA
Tomara que não precisemos de outra guerra para aprender o que nos falta. (Pausa longa) E bem, parece que vou ser condenada agora.

(...)

Caracas 1984-1992

FotografiasRoland Streuli 
TraduçãoAlejandra Rodrigues (alita_matias@hotmail.com)




        Sandra                        Rosalinda Serfaty
Dunia                           Fedra López

   
Realização cenografia: Ramón Pérez Pina 
Assistente direção: Carlos Ramírez 
Assistente produção: Sonia Diaz

Musicalidade: Eduardo Bolíva
Cenografia e figurino: Carmen Garcìa Vilar
Iluminação:Carolina Puig
Produção artística: María Eugenia Romero-Carolina Puig 
  
Diretor: Anìbal Grunn
Produção Geral:Benjamìn Cohen