Clarice Lispector, 100 anos: amigas relembram intuições, dramas e diferenças geracionais/ por Bolívar Torres, 5

 

Clarice Lispector. Foto: Fotógrafo não identificado /
Acervo Clarice Lispector / Instituto Moreira Salles


RIO — Na próxima quinta-feira, Clarice Lispector completaria 100 anos. Traduzida para 32 idiomas, publicada em 40 países e tema de muitas homenagens, como os quatro painéis dedicados a ela na 1ª Bienal Virtual do Livro de São Paulo, que acontece entre os dias 7 e 13, a autora de “A paixão segundo G.H.” e “A hora da estrela”, entre tantas obras memoráveis, continua mais presente do que nunca. Quarenta e três anos após sua morte, porém, é também uma ausência sentida por quem conviveu com ela de perto.

Três amigas íntimas de Clarice — a artista Maria Bonomi, 85 anos, e as escritoras Nélida Piñon e Marina Colasanti, ambas com 83 — conversaram com o GLOBO sobre os laços criados com a escritora. Elas trazem experiências, pintam retratos às vezes até contraditórios da autora, mas também lembram os pontos de aproximação.

Acima de tudo, são três vidas marcadas pela passagem meteórica da Estrela Clarice.

— Clarice deixou marcas infinitas em mim e em todo mundo que se aproximou dela — afirma Maria Bonomi. — E hoje é uma grande lacuna, porque ninguém ocupou o espaço que ela deixou.

A escritora Clarice Lispector. Livro “Todas as cartas”, lançado pela editora Rocco, reúne cartas escritas pela autora a editores, jornalistas, amigos, familiares e colegas de escrita em diferentes fases de sua vida Foto.


‘Sua alma peregrina vagava’, diz Nélida Piñon

Em uma missiva a Lygia Fagundes Telles, de 1977, Clarice Lispector criticou a ABL pela falta de mulheres em seu quadro e profetizou: “Se Nélida Pinõn estivesse na Academia, esta sofreria uma modificação revolucionária”. Publicada pela primeira vez este ano no livro “Todas as cartas” (Rocco), o texto mostra, em primeiro lugar, a intuição certeira da autora. Nélida, de fato, ingressaria na ABL em 1989 e seria a primeira mulher a presidir a instituição (entre 1996 e 1997). Mas a carta também confirma outra coisa: uma Clarice apoiadora das mulheres que admirava.

— Ela agiu em meu favor sem eu nunca ter dito a ela que desejava entrar na Academia, que na época era mesmo muito fechada às mulheres — conta Nélida. — Eu nem pensava nisso. Ela tinha alta percepção da vida, uma intuição extraordinária, uma sabedoria dos povos antigos.

Clarice Lispector (ao centro), com Nélida Piñon (à direita) e Marina Colasanti no II Encontro Nacional de Professores de Literatura, em 1975 Foto: Divulgação


Essa mesma perspicácia está na origem da amizade entre as duas escritoras. Clarice aceitou ler os originais de “Guia-mapa de Gabriel Arcanjo” (1961), que viria a ser o primeiro livro de Nélida. Mesmo sem saber nada sobre a moça 20 anos mais jovem, teve o vislumbre de uma grande amizade. No momento em que Clarice morreu, em 9 de dezembro de 1977, Nélida segurava a mão esquerda da amiga. Olga Borelli, a assistente de Clarice, segurava a mão direita.

Quando começaram os preparativos para o enterro, Olga contou a Nélida que Clarice não poderia ser enterrada como judia, pois havia se convertido ao cristianismo. Mas, como a autora não havia deixado o desejo por escrito, guardaram segredo. Era mais um desses mistérios de Clarice.

— Sua alma peregrina vagava, e havia nela a nostalgia de um deus — diz. — Embora amasse o Brasil, não se situava em nenhum lugar. A sua tristeza vinha de longe.

Para Nélida, a amiga estaria “assustadíssima” com seu próprio sucesso de hoje:

— Sua obra criou uma sensibilidade compatível com os movimentos libertários e cobrou novas maneiras de definir o mundo. Clarice falou muito às mulheres que estavam crescendo por conta do feminismo, mesmo sendo discreta nas questões sociais. Porque ia mais fundo do que isso, ela ia na alma.

Para Marina Colasanti, ‘a obra revela mais do que amizade’

As mãos de Clarice foram o que mais chamaram a atenção de Marina Colasanti quando a conheceu pessoalmente. Levada ao apartamento da escritora no Leme por um colega do “Jornal do Brasil” no início dos anos 1960, a então jovem repórter ficou muda. Afinal, desde criança comprava a revista “Senhor” para ler os contos da autora. Apenas escutou impactada a conversa entre aquela mulher sofisticada e seu interlocutor. Dois anos depois, ao saber que as queimaduras provocadas por um incêndio na mesma residência poderiam resultar na amputação da mão direita de Clarice (o que não aconteceu), Marina estremeceu.

— Mandei duas dúzias de rosas para o hospital — lembra ela, que coescreveu, com o marido Affonso Romano de Sant’Anna, o livro “Com Clarice” (Unesp, 2013), um documento sobre amizade entre o casal e a autora. — Sabia que ela provavelmente nem receberia ou nem saberia de quem eram, mas quis contribuir de alguma maneira.

A escritora Clarice Lispector, em 1964 Fotos: Arquivo / Agência O Globo


Em 1967, Clarice virou cronista no “Jornal do Brasil” e Marina ficou encarregada de auxiliá-la, cuidando inclusive dos seus textos. Ela apresentou à escritora a cartomante que aparece em “A hora da estrela”, e com quem Clarice passou a se consultar o resto da vida. Apesar do laço fortalecido ano após ano, Marina não foi influenciada em nada pela amiga: nem como feminista, nem como artista. Desmente, inclusive, a ideia de que Clarice quebrou barreiras ao frequentar ambientes predominantemente masculinos.

— Quando cheguei no jornal, em 1963, já havia mulheres em todos os setores, menos na fotografia — lembra Marina. — Clarice esteve à frente do seu tempo na escrita, não em comportamento. Mas quem se inspira na sua escrita está ferrado. Porque ela é tão pessoal, tão única, que a influência transparece de imediato.

Conviver com Clarice Lispector, lembra Marina, era um “privilégio”, mas não necessariamente uma entrada para seus segredos. As conversas em geral rodavam por questões como comida e mapas astrais de amigos.

— A obra revela muito mais dela do que a convivência pessoal — diz Marina. — Nela, Clarice entregava tudo: seus desejos, seus temores, e até parte da sua biografia.

Com Maria Bonomi, a troca através das artes plásticas

A artista Maria Bonomi é testemunha-chave de um aspecto que costuma ficar em segundo plano na biografia de Clarice: a sua relação com as artes plásticas.

As duas se aproximaram em 1958, quando Clarice, que certa vez questionou se escrevia “por não saber pintar”, ainda morava nos Estados Unidos.

A autora fazia observações que chegaram a alterar decisivamente o trabalho de Bonomi, especialmente depois que ela passou para a xilogravura, nos anos 1970. A técnica, que se utiliza de uma matriz em madeira para criar um desenho por meio de sulcos, fascinava a escritora.

Quadro de Clarice Lispector comprado por Nélida Piñon em um leilão, em 2019, por R$ 200 mil Foto: Reprodução


— Ela me disse que meu trabalho a ajudou muito na escrita — conta Bonomi. — Clarice ficou encantada com a questão da matriz, que é a busca da imagem pela escavação, pelo trabalho de corte. A matriz é onde fica a energia, o sentimento. A xilogravura é um trabalho muito direto, de apropriação imediata, que não tem o pincel no meio criando uma distância. Clarice o comparava com as burilagens da palavra. Ela mergulhou fundo nas imagens, pois não era “uma pessoa que ficava na superfície”.

Em parte graças às trocas com a amiga, a própria autora acabaria produzindo 22 quadros, sendo 19 sobre madeira (ambas tinham o mesmo apego pelo material). A experiência com a pintura influenciou na escritura complexa de seu romance “Água viva” (1973). Para além das relações entre palavra e imagem, a xilogravura levou as duas mulheres a refletirem sobre o que é o “original” em uma obra. No âmbito pessoal, também conversavam sobre suas diferenças geracionais.

— Clarice alargou os horizontes das indagações da mulher, do significado do que era ser mulher, e preconizou uma forma de percepção feminina — acredita Bonomi. — Por eu ser (quinze anos) mais jovem, me fazia muitas perguntas sobre minhas experiências íntimas. E queria saber com detalhes. Creio que vivia essa outra dimensão da vida através de mim. Tanto que houve um momento em que me dirigi para uma forma de vida homossexual, que vivo até  hoje, e ela quis acompanhar tudo, saber de tudo.

Fonte: O Globo / Fundaçao Schmidt

Por: Bolívar Torres